Friday, November 21, 2008

amar é lento.

Queria uma Gisele, mas ficou com Maria.

Afinal, a vida não podia ser tão diferente do que os outros repetiam tantas vezes, não se pode ter tudo. E mesmo assim, o resultado nem deve ter sido doloroso. Maria era amorosa, dedicada, uma especialista nos cuidados do lar. Acabou desenvolvendo por ela uma admiração cotidiana que não pôde fugir à regra: era amor.

Juliano já era homem quando a mãe, chamando-lhe em um canto, o encurralou sem rodeios: “você é gay?”. Antes que pudesse responder, a mulher deu as costas e se pôs a chorar um choro pesado de frustração. Não era nada disso. A verdade é que era muito reservado, e por conta disso, a família se reunia em segredo semanalmente para analisar seu comportamento. Não fora um jovem peculiar. Boa parte de sua adolescência passou trancado dentro de um quarto jogando vídeo-game e escondendo revistas de mulheres nuas embaixo da cama. Os anos foram passando, e nada mudou. Seguindo a velha ordem da vida, já era hora de ter conhecido alguém. De molecote esquisito, passou a um adulto recalcado, e as notícias do mundo lhe interessavam tanto quanto os jogos juvenis esquecidos numa caixa de papelão. Só uma coisa o fazia se sentir vivo. E por mais estranho que isso soasse, a preocupação de sua mãe teria diminuído drasticamente se ela soubesse que, na realidade, o filho era apaixonado, sim. Por mulheres.. bonitas.

Todos os dias, saía de casa para o emprego medíocre que conseguiu sem estudar. Fazia sempre o mesmo percurso, uma rua movimentada de quatro pistas, calçadas largas, poucas árvores, muitas lojas e edifícios comerciais. Era impressionante a quantidade de mulheres belíssimas que circulavam naquele horário. Com o passar do tempo, sentiu-se obrigado a fracionar seu horário de almoço, para que pudesse ter dois momentos de contemplação em via pública, seguindo à catarse de imagens e sensações que esmagavam seu corpo. Turbilhões de pensamentos ricocheteavam por todos os cantos de sua cabeça, procurando entender de onde viam aquelas criaturas magníficas. Eram tantas e tantos cheiros, tantas cores e balanços de quadris. Ficava maravilhado. Diariamente, durante os intervalos que conseguia obter, sentava-se em um café do outro lado da rua de um centro comercial. Era um cafezinho simpático destes com as mesinhas de madeira na calçada e garçons atenciosos. A dona do estabelecimento, Dona Iraci, já reservava uma mesa especial naquele horário pra ele. O homem sentava, com sua eterna cara de moço, pedia um expresso sem creme, e iniciava seu ritual. As mulheres deslizavam sobre a rua em direção ao café, ou a qualquer outro lugar. Planavam em suas pernas tão delgadas e singelas, as roupas levitando conforme caminhavam, os cabelos volumosos ao vento. Analisava suas expressões, seus perfumes- que alteravam-se conforme o humor do dia-, os tons de voz. Imaginava-se com elas, em viagens inesquecíveis pela Europa. As que entravam no café ousou perguntar seus nomes. Cafés com Anas, Claras, Luísas... tornou-se um conhecedor profundo da feminilidade que o cercava e habitué do local. Ao contrário de poetas com alma de mulher, Juliano não escrevia, nem tinha jeito para retórica. Manteve a sua alma de homem em eterno estado de contemplação.

Tudo poderia ser resumido assim, e talvez permanecesse dessa forma por muito tempo, naquele emprego, naquele trajeto, na família sussurando intervenções. Até que outra personagem entrou em cena. Mas não desbancou as anteriores, nem foi alvo de declarações e êxtases. Era só Maria, a garçonete do café. Mocinha simples, inteligente, cabelinhos sem corte, se divertia com o sujeito pontual que se sentava à mesa 7, e pedia sempre a mesma coisa. Maria tornou-se admiradora exclusiva dele. Também buscava seu cheiro, suas expressões. O coração batia mais forte quando o via atravessar a rua, e com muito custo foi traçando um plano de aproximação.

Antes que os amigos concretizassem de uma vez por todas a tão pensada intervenção familiar, resolveram segui-lo por uns dias. Chocados com a descoberta, tão cedo a repassaram à família, Juliano apareceu em casa. Não estava só. A mão esquerda magrela, segurava outra mãozinha talvez menos esquálida, a de Maria. A família correu para a sala, a mãe sustentava uma expressão tão boquiaberta que seu nariz desaparecera.

Até aquele ponto, nunca soubera o que era amor, só o sublime. A cumplicidade com Maria fez com que aprendesse a singeleza da mulher, nos mínimos detalhes. A proximidade com ela mudou seu cotidiano, e fez novos rituais.
Às vezes, imaginava como seria se Maria fosse uma Gisele. Mas era uma idéia vazia que rapidamente se dissipava entre tantos outros pensamentos bons. Decidiu ouvir o conselho dos outros, e ficou com a que lhe tratava bem.
Terminavam todos os dias assim, deitados na cama, o rosto virado para ela, observando-a dormir.

ps: mais um texto sem revisar cautelosamente. tenho medo de desgostar neste processo, rs.
Esse é bom pra ouvir ao som de ... um monte de coisa. mas vou deixar a dica de deusa urbana, do caetano.

Sunday, November 02, 2008

Cíntia.

Fazia o que podia, mas Cíntia era uma mulher feia. Quando nasceu, a mãe olhando o berço noite adentro deixou soltar um suspiro longo e triste. Dessa maneira, desde pequena, foi encorajada a desenvolver pequenos talentos. Era habilidosa nas tarefas domésticas, paciente e possuía uma pontualidade implacável. Todos esses bons feitos, se não fosse feia.
Aos 18 anos, e aparentando ter muito mais, saiu da casa da mãe para tentar a vida na capital, que era longe, como professora. Todo o dia olhava-se no espelho. O rosto assimétrico, a pele manchada, os dentes desesperados para sair. Era como se esperasse uma nova imagem surgir naquele pedaço velho e carcomido pelo tempo. Como era de se imaginar, nada mudou. A não ser pelo fato de que, com o tempo, ia ficando ainda mais feia.
Cíntia desenvolveu um misto de paciência e reflexão que a tornaram uma narcisa ao contrário. Nunca se permitiu ter amores. Era tão consciente de sua ausência de beleza que era capaz de se desculpar ao entrar em lugares públicos. As mulheres bonitas a incomodavam horrorosamente, não conseguiu ter amigas. Sua única companhia era o velho gato doente que ganhou de um aluno, porque a mãe do moleque queria se desfazer do bichano.
Apesar de tudo, não era triste. Ajeitava os poucos cabelos que lhe restavam à cabeça pra ir à missa, e agradecia a Deus por estar viva. Na escolinha, as crianças gostavam dela, e por lá ficou cerca de quatro anos. Teria ficado mais, se não tivesse recebido uma carta de alguém avisando que a mãe ficara doente, e necessitava de cuidados. Imediatamente, juntou o pouco que ganhava para comprar uma passagem de volta à casa da mãe, a sua cidade natal de onde nunca deveria ter saído.
Ao chegar à casinha velha que nasceu, bateu à porta sem hesitar e esperou por resposta. Quanto tempo se privou de tudo por aquela viagem, pelo momento que viria a seguir. A pobreza evidenciada nas roupas e na colônia barata, o sol de meio-dia rachando em sua cabeça, escutou os passos. Era importante voltar pra casa, cuidar da mãe, o único ser humano que se deu ao luxo de abandonar.
Foram os dois minutos mais longos de sua vida. A mãe vinha caminhando em sua velocidade senil dentro da casa, ouviu-a tossir e girar a chave na fechadura. Ao abrir a porta e ver sua figura feia, a mãe caiu estatelada no chão. Infarto fulminante.
* a preguiça de revisar o texto foi grande, importante frisar.